Preciso tornar este texto o mais objetivo possível. Preciso situar-me concretamente, definir com clareza a proposição que me leva a escrevê-lo, sufocar qualquer forma de distorção apaixonada. Preciso assim ser, pois não sei que de outra forma posso começar a escrever o que quero, se o que eu queria não é possível de ser escrito sob a coerção que a minha vontade me impõe. E se isto é assim, é por eu não ser capaz de saber o que quero escrever. Apenas sei que, neste momento, há algo muito grave acontecendo dentro de mim, como se uma língua que desconheço fosse decifrada por outra igualmente obscura.
Preciso ser objetivo e manter-me assim, na desinteressada esperança de que minhas palavras entrem em descarrilamento, de que o ritmo delas despertem num transe a dança das outras que jazem subjacentes, celebrando em seus primitivos estandartes os demônios silenciosos que me espreitam e que influem neste impulso de escrever. O que são estes demônios? Serão eles, mais especificamente que o motivo, o próprio objeto que das palavras exigem o sacrifício para se mostrarem? Ou ao menos, para se acalmarem?
Pergunto-me se posso mentir - ou melhor, persuadir - a mim mesmo de acreditar que o que eu queria escrever foi escrito, e que emana desse texto. Talvez. Talvez também seja o sono, mas sinto como se, n'algum lugar muito distante de algum lugar muito distante daqui, deuses (ou demônios) tivessem se acalmado após um sacrifício coletivo.