domingo, 11 de outubro de 2009

Litania

Escorrendo nesta noite em fora, vagaroso no tremor-nervoso que não sai do lugar, gota gélida de suor flutuando perdida entre dois sóis, trilhando em catábase para o abismo daquilo que não sei mais se é real, abrigando-me no passado por não ter onde ir, amparo meus olhos na fechadura que conduzem - não sei porquê - a ti (e não a nós, separados pelo epílogo de cinco anos de uma história que terminou sem ter acontecido - e que terminou por terminar), e caio em suspensão pelo peso imensurável da perplexidade, esta palavra que esconde atrás de si o desespero, o arrependimento, e todas as outras dores que dóem sem ser listadas, que dóem de doer. Olho a mulher que você se tornou, há tão pouco tempo uma garota assustada em meus braços, fazendo seus jogos felinos perante meus olhos grandes e redondos, aconchegando os mimos que não consegui me repreender de fazer (e de não fazer), dançando seu cabelo vermelho azul preto no canto em que conversávamos, me atraindo ao vento molhado da noite e resplandecendo, na nossa espera de casal jamais unido, àquela luz da lâmpada que teimava em piscar, vacilante, no deserto do ponto final do dia. Olho-te escondido, amor (e as lágrimas escorrem pela fechadura): como você está linda, mudada, e no entanto a mesma. Como te desprezo, te vejo, te quero. E então me pergunto como te perdi. Percorro o enigma, nos vejo na fábula que adormeci e que, quando acordei, você tinha já ido embora; lembro-me da surdez de minha ingenuidade aos miados suaves e baixinhos da sua boca, e constato, calado, oferecendo-te apenas este silêncio, que ora sofre em resistir, que se recolhe com dificuldade em sua própria espiral, desejando sumir em si mesmo, e secretamente sabendo que jamais o é possível.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Na esquina

Na esquina da vida,
o fantasma sai
para tomar um ar.

(Depois de algum tempo, volto - pela saudade - a desenhar no paintbrush).

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Manhã


Nós jamais superamos as coisas, apenas nos separamos delas.

Que consigamos fechar os olhos e desenlaçar as mãos; que nossa partida seja sempre no minguar da madrugada, na madeira fria, na sombra essencial ante o verde e o azul, no silêncio do nascente e no beijo na testa daquela que adormece. Que sejamos pequeninos e colhamos as folhas caídas; que entendamos a canção dos passarinhos e não saibamos para onde estamos indo. E que pela nossa inocência de além dos pés, sejamos destemidos. Que não desafinemos em nossa súplica e que não olhemos para trás enquanto subimos. (Que sobretudo não olhemos para trás, nós que fomos tão longe, longe demais, e não o suficiente). Que consigamos segurar o choro, mas que nasça em estrela uma única lágrima na noite de nosso rosto. Que sejamos fortes por não termos ninguém para nos abraçar. Que a doçura e a ternura continuem a ser os pilares da retidão. Que continuemos nos perguntando, infinitamente, onde é (onde foi) aquele paraíso que não soubemos como entramos nem como saímos, pedaço de lembrança mais belo que sonho. Que sejamos capazes de permitir que o nome dela (de todas elas), escrito nesse barquinho de papel, flutue para além de nossas mãos. Olhemos uma última vez para o jardim; e que dessa visão, deixemos escapar um suspiro.

Hoje sou manhã, e essa manhã é lembrança.

domingo, 2 de agosto de 2009

Uma mentira

A mentira consiste num duplo trabalho de convencimento. Primeiro, em convencer o outro de sua mentira, e depois convencer a si mesmo que o outro se convenceu dela.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Método (um preâmbulo)

Preciso tornar este texto o mais objetivo possível. Preciso situar-me concretamente, definir com clareza a proposição que me leva a escrevê-lo, sufocar qualquer forma de distorção apaixonada. Preciso assim ser, pois não sei que de outra forma posso começar a escrever o que quero, se o que eu queria não é possível de ser escrito sob a coerção que a minha vontade me impõe. E se isto é assim, é por eu não ser capaz de saber o que quero escrever. Apenas sei que, neste momento, há algo muito grave acontecendo dentro de mim, como se uma língua que desconheço fosse decifrada por outra igualmente obscura.
Preciso ser objetivo e manter-me assim, na desinteressada esperança de que minhas palavras entrem em descarrilamento, de que o ritmo delas despertem num transe a dança das outras que jazem subjacentes, celebrando em seus primitivos estandartes os demônios silenciosos que me espreitam e que influem neste impulso de escrever. O que são estes demônios? Serão eles, mais especificamente que o motivo, o próprio objeto que das palavras exigem o sacrifício para se mostrarem? Ou ao menos, para se acalmarem?
Pergunto-me se posso mentir - ou melhor, persuadir - a mim mesmo de acreditar que o que eu queria escrever foi escrito, e que emana desse texto. Talvez. Talvez também seja o sono, mas sinto como se, n'algum lugar muito distante de algum lugar muito distante daqui, deuses (ou demônios) tivessem se acalmado após um sacrifício coletivo.