sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Sem título

Sem o mundo fico mudo
e mudo nada mudo.
Com o mundo mudo,
e mudado, fundo outro mundo.

No fundo do mundo mudo
como findo no mudo o tudo,
quando procuro e não cuido
aquele mundo que me iludo.

Pois, mudo - sim -, me iludo
e, oculto, me anulo.
Mas, se no luto, me curo
como vulto volto ao mundo:

Esse mundo que agora cuido
no fundo do meu fulcro
no apelo surdo, mudo,
do mundo, do tudo.

domingo, 13 de novembro de 2011

O homem

...e há esse algo de promíscuo no sofrimento, que nos leva a devassar nossos fantasmas e expôr a anatomia de nossas fraquezas, completamente insensíveis à vergonha que antes nos sustentava e ao pudor que nos purificava, numa tentativa desesperada de formar alguma consciência. E é nesse culto obsceno, em que nos tornamos baixos e indignos, insuportáveis e ridículos, que podemos, quem sabe?, ser chamados de humanos, enfim. Humanos: com toda sua carga de abandono e miséria, de esperanças e fracassos, de medo e solidão. É apenas na imundície e na crueza que nos salvamos.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Maçãs conjugais

"O que é que eu quero
Se eu te privo do que eu mais venero?"
(R. Seixas/P. Coelho)

Tenho tido problemas para justificar meus atrasos no trabalho. Já recebi advertência. Cada pedaço da minha vida está sendo arruinado por essa mulher. Eu saio na hora do almoço e volto mais magro ao escritório. Às vezes, quando muito, como um pastel em algum boteco que, por sorte, esteja localizado em um ponto privilegiado. Observo-a de longe, mastigo depressa, quase esqueço de pagar a conta. Computo cada gesto, cada sorriso. Sim, os sorrisos: são eles que me matam. São eles que conferem a independência da felicidade dela em relação a mim. Ela e os colegas saem do restaurante, vejo-a falando com um deles, um homem. Pego o maço, tiro um cigarro, acendo-o. No bolso, um cartão de um detetive particular. Aliso-o com dedos nervosos, penso em colocar microfones em sua bolsa. Mas faltam-me recursos - e insanidade. Sim, sobretudo a insanidade necessária para vazar meus olhos em cada detalhe e momento dela. Mantenho um revólver que comprei há dois meses em nossa casa, debaixo de nossa cama. Minha raiva é silenciosa, meu domínio frustrado sobre sua vida é coisa que guardo em mim. Às vezes, quando observo-a deste boteco imundo, minha vontade é pegar o revólver e matar esse sujeito com quem ela tanto fala. Eu é quem deveria ter o poder de fazê-la sorrir, e não esse moleque que acabou de sair das fraldas. Mas quando estamos em casa, no limite dos três anos de casados, o meu ressentimento é mais forte: extrai lágrimas, almofadas e paredes. Talvez melhor fosse matá-la. Ou meter logo a bala em minha cabeça. Agora ela volta à empresa: não foi hoje que aproveitou a hora do almoço para ir num motel. Suspiro de alívio, buscando como um desgraçado o nosso fim que tanto desejo não desejar. Corro ao meu escritório, cada dia mais suado, cada dia mais magro. E uma vez mais atrasado.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

La mort du loup

O homem está sentado sozinho frente ao mar. As mãos cruzadas tentam conter o frio que ameaça a espinha. Os dentes se contorcem ritmicamente e as pontas dos dedos adquirem tonalidades crepusculares. Talvez frágeis formações de gelo se organizem em volta de suas narinas, e certamente as retinas encontram-se congeladas, capturando com amargura a violência arcaica das ondas contra as pedras. Há vinte e seis dias ele não toma mais os comprimidos: a necessidade científica de testar os condicionantes de sua vida; a ética auto-destrutiva de sondar os limites da ilusão da natureza de seu mundo. E ele constata, ali, que as conquistas dos dois últimos anos se concentraram em vinte miligramas diários da hóstia sintética, consumida religiosamente, sob o sol que não brilha agora. O oceano avança, engole as rochas, e o homem observa, com mãos atadas, seus castelos de areia - tão laboriosamente levantados - se dissolverem face àquela força monstruosa. Levanta-se então e caminha, hesitante, rumo ao mar. Enfim um ato de sua autoria, pensa. Cada vez mais o corpo se torna gélido e mineral, até se indiferenciar por completo na água. Sente o ímpeto da vida levando-o correnteza adentro, e segura na mão, o quanto pode, os últimos vinte e seis comprimidos do antidepressivo, como em oferenda. E exila-se da terra, de uma vez por todas.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Sem título

Me embrenho sua selva acima
e incendeio por dentro suas árvores,
farejo o aroma esquálido da sua flora
e procuro, cego, tuas relíquias
- essas que tinhas quando menina
e que as outras preservam
na limítrofe castidade de suas vidas.

Sou um soldado e ergo entre fumaças
dos destroços de nós dois
o sangue irrigado em pestilência
e abro olhos às delícias
que vendes em varejo
a mim, aos meus irmãos,
desde o início dos tempos.

Eu gargalho seu engasgo,
submeto teus joelhos ao meu ídolo
faço cumprires promessas baratas
por um punhado de moedas
de ouro, de cobre, de cabelos
saqueados da igreja
da inocência de meu idílio.

O cálculo do teu orgasmo
é pimenta para meu corpo
e tem a geometria da féria diária
que deposito nas suas mãos
ágeis, dolorosas, brancas
que encenam um adeus
no fim de nosso tempo
que insisto em mais quatro versos
estender inutilmente
ante o irrevogável preço
da sua máscara de desejo.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Sete anos

Sete anos depois de ter saído para comprar cigarros, ele voltou. A mulher recebeu-o de avental, segurando um pano de prato. Ele beijou seu rosto. Percebeu três meninas acuadas, colocou sua maleta sobre uma cadeira. A mulher gesticulou chamando-as, e elas vieram em fila (ele não as reconhecia mais). Afagou suas cabeças, na medida que a um homem é dada a permissão de expressar afeição. Sentou-se na cadeira da ponta e aguardou-as terminarem de preparar a mesa. A mulher o serviu e começaram o jantar. O barulho das gargantas engolindo carne assada, arroz. Engolindo o feijão, a casa, o mundo. Engolindo o tempo, os anos e uns aos outros. Não havia nada nos olhos dele. Não havia hesitação, nem gestos, nem significado. Limpou com eficiência a boca, levantou-se com gravidade e sentou na poltrona frente ao rádio desligado. Aguardou lavarem os pratos, arrumarem o que fora desarrumado. As três vieram em fila, viram-se refletidas nos olhos dele. Cada uma foi beijada na testa - seus beiços frios. E então puderam recolher-se. A mulher voltou, subiram os dois ao quarto e foram à cama. Nenhum gemido, nenhum prazer. Terminado, cada qual voltou-se ao seu lado. E essa noite repetiu-se para sempre, entre fumaças de cigarro do comércio da esquina.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Incêndio

Observo com desalento o incêndio à minha frente. Desenlaço a gravata e desatarraxo um botão da camisa em troca de mais ar. Estou suando muito, passo a mão na testa e depois no paletó e sinto sede. Não consigo pensar em nada, como se todo o movimento que minha cabeça devia estar fazendo está naquelas chamas vigorosas. Por fim vejo pessoas gritando, outras chorando, outras paradas. Somos todos um no mesmo desespero. Começo a vagar a passos confusos e a olhar à minha volta como fosse a primeira vez que estivesse no mundo. Percebo aleatoriamente o barulho ensurdecedor do local, o rugido da queima, os metais se retorcendo, vidro sendo arrastado, gritos, e depois volto a ser indiferente a isso. Ando despreocupado e alheio aos outros. Não somos todos um num mesmo desespero, pois não sinto comunhão com aquele espetáculo. Somos todos, sim, estilhaçados, cada qual limitado a si mesmo, radicalmente apartados, desamparáveis. Noto que continuo segurando minha maleta na mão e, sem me dar conta, me sento no meio-fio. Estou muito cansado. Um homem me oferece uma garrafa de água e agradeço sua bondade. Tomo apenas um pouco, por educação, mas tendo o sujeito sumido quando buscava eu devolver-lhe, resolvo tomar o resto. Ponho a maleta na calçada e me deito a cabeça sobre ela. O cansaço é devastador, mas dá lugar ao alívio. Expando-me pelo espaço, estico as pernas, com o braço vedo meus olhos. Pouco a pouco durmo com a esperança de, quando acordar, estar na minha cama. Em alguma gota do fundo dos meus pensamentos, há uma consciência de que tudo que construí na vida se perdeu naquele fogo. Mas vejo-o desinteressado. Sou apenas cansaço. E durmo.