sábado, 16 de fevereiro de 2013

Epístola

Encontrado nos despojos de P., esta carta foi escrita a punho seis anos antes do falecimento do mesmo. Com a descoberta desta evidência, coloca-se em dúvida (ao menos para alguns) as circunstâncias de sua morte. Como se sabe, P. morreu de atropelamento. Reproduzemo-na:

“Se essa perplexidade que provoca uma disrupção em relação à vida é o sentimento de absurdo, então eu tenho vivido no absurdo. E ainda: se, diante do absurdo, só se tem dois destinos possíveis - o restabelecimento ou o suicídio -, então encontro-me no fio da navalha. Estar vivo quando viver é absurdo é uma experiência de mortificação que dói e faz adoecer. É um processo tão precário que demanda uma solução rápida e, ao mesmo tempo, tão antinatural, que a vida se torna repulsiva o suficiente para ser descartada. No entanto, o terceiro destino do sentimento de absurdo, que o filósofo se esqueceu de enumerar, é a fé. Os próximos cinco ou dez anos serão os anos de preparação para o suicídio. Para que um homem seja capaz de tirar a própria vida, ainda mais quando até mesmo em seu desespero está consciente e racional, ele precisa de uma transformação. Para que um homem irrevogavelmente racional possa se suicidar, em suma, ele precisa se transformar em um novo homem. Esse novo homem, para quem o restabelecimento é uma impossibilidade ética, porquanto represente uma submissão e conformação que lhe são insuportáveis; esse homem, que trocou a capacidade de amar pela incapacidade de se desvencilhar do sentimento de revolta e indignação; enfim, esse homem - esse novo homem -, é o resultado da preparação ao suicídio, processo este inevitavelmente espiritual, e estabelecido através da fé. Esse novo homem, para conseguir se matar, forçosamente deve ser capaz de ter fé, e só pode ter fé, se for capaz de tirar a sua própria vida. Para o novo homem, o suicídio é um ato de fé. Para o novo homem, ter fé é o ato de suprema transgressão. Para o novo homem, o seu nascimento coincide com a sua expiração”.

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