terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Decadência (fragmento de um diálogo)

- "Sabe qual é o seu drama? Sabe por que você odeia tanto as pessoas?" - perguntou ela, mas não em tom de desafio. Ela se sentia, a essa altura, tão saturada, que queria pôr um fim a tudo aquilo e ir embora o mais depressa possível. Ela ultrapassara os limites da paciência - virtude que tanto se vangloriava para si mesma - e, se sentira alguma vez compaixão pelo amigo, já não o sentia mais. A amizade entre eles, aliás e naquele momento, era descartável e ela mesma desejava que chegasse ao fim, contanto pudesse sair daquela redoma insuportável a qual havia sido puxada. Ele, por outro lado, olhava fixamente para ela. No fundo, ele se deliciava com a reação que provocara; todas as instituições estavam falidas para ele, todas. E cada vez que conseguia corroborar esta sua crença para os outros, sentia um triunfo da decadência - sentimento até, de certo modo, lascivo -, e que o coroava com a emoção de se sentir o mais infeliz e decadente dos homens. E então ela respondeu à pergunta que ela mesma havia feito, absolutamente inervada:
- "É porque você está indignado. Você está indignado porque descobriu que é um merda, que você é um insignificante; que ninguém, lá no fundo, daria nada por você. Outra fonte não há para o seu ódio." - Ela assustou-se um pouco com o que disse, mas manteve-se firme. Olhava para ele, agora desafiando-o, exigindo uma reação, o que não tardou a acontecer.
- "Exatamente, minha cara. Exatamente! Enfim a verdade crua, que eu tanto esperava da boca de alguém!" - e sorriu. "Agora você pode ir embora; você está livre. Voe!" - e falou de uma maneira zombeteira e com um sarcasmo que beirou a nojeira. Ele mesmo se levantou de supetão e, sem se despedir, foi-se embora, deixando-a sozinha. Imaginou-se, enquanto andava para longe, que vomitara sangue e excremento nessa instituição chamada "amizade" e que ali, com uma presteza extraordinária, decretara a falência dessa mesma instituição. Sentia-se plainando entre os edifícios, abençoando com sua canalhice as ruínas do mundo. E no dia seguinte, quando ela lhe enviou, logo pela manhã, uma mensagem dizendo que o compreendia, que aquilo apenas era uma fase e, em suma, que pedia desculpas - sua face deformou-se em um sorriso terrível, que exprimia ruindade e indiferença. "Um minuto de 'não' que seja, vale para mim toda a eternidade", murmurou ele para si mesmo. Excluiu a mensagem e voltou a dormir um sono intranquilo. "Como sou infeliz, meu Deus", suspirou ele, acordando duas horas mais tarde, com ambas as mãos segurando seu rosto e um gosto amargo na boca.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Epístola

Encontrado nos despojos de P., esta carta foi escrita a punho seis anos antes do falecimento do mesmo. Com a descoberta desta evidência, coloca-se em dúvida (ao menos para alguns) as circunstâncias de sua morte. Como se sabe, P. morreu de atropelamento. Reproduzemo-na:

“Se essa perplexidade que provoca uma disrupção em relação à vida é o sentimento de absurdo, então eu tenho vivido no absurdo. E ainda: se, diante do absurdo, só se tem dois destinos possíveis - o restabelecimento ou o suicídio -, então encontro-me no fio da navalha. Estar vivo quando viver é absurdo é uma experiência de mortificação que dói e faz adoecer. É um processo tão precário que demanda uma solução rápida e, ao mesmo tempo, tão antinatural, que a vida se torna repulsiva o suficiente para ser descartada. No entanto, o terceiro destino do sentimento de absurdo, que o filósofo se esqueceu de enumerar, é a fé. Os próximos cinco ou dez anos serão os anos de preparação para o suicídio. Para que um homem seja capaz de tirar a própria vida, ainda mais quando até mesmo em seu desespero está consciente e racional, ele precisa de uma transformação. Para que um homem irrevogavelmente racional possa se suicidar, em suma, ele precisa se transformar em um novo homem. Esse novo homem, para quem o restabelecimento é uma impossibilidade ética, porquanto represente uma submissão e conformação que lhe são insuportáveis; esse homem, que trocou a capacidade de amar pela incapacidade de se desvencilhar do sentimento de revolta e indignação; enfim, esse homem - esse novo homem -, é o resultado da preparação ao suicídio, processo este inevitavelmente espiritual, e estabelecido através da fé. Esse novo homem, para conseguir se matar, forçosamente deve ser capaz de ter fé, e só pode ter fé, se for capaz de tirar a sua própria vida. Para o novo homem, o suicídio é um ato de fé. Para o novo homem, ter fé é o ato de suprema transgressão. Para o novo homem, o seu nascimento coincide com a sua expiração”.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Um idiota, parte 1

Ele era uma criança no corpo de um adulto. Para os que não o conheciam - ou que não queriam acreditar ou lembrar que o conheciam -, o rosto, quando sério, denotava gravidade e seriedade, e desta forma esperavam algo dele (‘talvez’, diziam entre si, ‘ele pode nos ensinar alguma coisa’). Mas, era apenas eles lhe permitir abrir a boca para falar algo, dar-lhe condições para se manifestar, e algo estranho de súbito já começava a surgir. Primeiro, pressentia-se algo de errado (‘será que é isso mesmo?’, pensavam), e prosseguiam o exame até o momento de sentirem-se inteiramente à vontade de sentenciarem, abertamente entre si, não raro com gargalhadas e galhofas: ‘sim, é isso mesmo’! Posteriormente, remexendo consigo as memórias de quando estivera com os outros (e muito amiúde ele fazia isso, já em sua solidão), o adulto envergonhava-se do que a criança falara - e pior, de como a criança falava. Mesmo forçando interpretar um adulto, a teimosia da criança fazia-se imiscuir em suas palavras, em seus gestos, em sua postura, em seu olhar. Apesar das tentativas em dominar a língua dos adultos, a sua ingenuidade colapsava o engenho necessário para tanto. A consequência disso era uma criança no corpo de um adulto. O adulto era triste. A criança também.

sábado, 24 de março de 2012

Pobreza (fragmento de um diálogo)

"...Sim, eu sei. Mas entenda o seguinte. Por durante todos esses anos, eu havia vivido sob a égide de um medo: o medo de ganhar. Neste sentido, as minhas incursões ao vazio, que com tamanha substância representaram a estagnação e isolamento de minha juventude, eram realizadas de maneira impetuosa, posto que eu não tinha nada a perder. Com o medo de ganhar, em suma, eu já estava nas condições de perdedor antes do início de qualquer minha empresa; e a preocupação única era de, cuidadosa e sutilmente, não ganhar, não obter lucro, não sair do negativo. O que me ocorre agora é, por outro lado, o medo de perder. Fui intoxicado por isto e, tendo vivido aquém do limiar da pobreza por tantos anos, a migalha que há – ou havia – na minha mão tornou-se-me o bem mais precioso. Se para outros, que viveram as suntuosidades e exuberâncias da vida normal e mediana, isto que agarro é nada, este nada para mim não obstante é tudo, ainda que tão pouco seja à sombra do que eles têm ou tiveram. Veja: o pior medo de quem não tem nada a perder, é perder aquele nada que achava não ser possível perder. É enxergar que, no fim das contas, somos inapelavelmente vulneráveis - não importa nossa pobreza".

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Sem título

Sem o mundo fico mudo
e mudo nada mudo.
Com o mundo mudo,
e mudado, fundo outro mundo.

No fundo do mundo mudo
como findo no mudo o tudo,
quando procuro e não cuido
aquele mundo que me iludo.

Pois, mudo - sim -, me iludo
e, oculto, me anulo.
Mas, se no luto, me curo
como vulto volto ao mundo:

Esse mundo que agora cuido
no fundo do meu fulcro
no apelo surdo, mudo,
do mundo, do tudo.

domingo, 13 de novembro de 2011

O homem

...e há esse algo de promíscuo no sofrimento, que nos leva a devassar nossos fantasmas e expôr a anatomia de nossas fraquezas, completamente insensíveis à vergonha que antes nos sustentava e ao pudor que nos purificava, numa tentativa desesperada de formar alguma consciência. E é nesse culto obsceno, em que nos tornamos baixos e indignos, insuportáveis e ridículos, que podemos, quem sabe?, ser chamados de humanos, enfim. Humanos: com toda sua carga de abandono e miséria, de esperanças e fracassos, de medo e solidão. É apenas na imundície e na crueza que nos salvamos.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Maçãs conjugais

"O que é que eu quero
Se eu te privo do que eu mais venero?"
(R. Seixas/P. Coelho)

Tenho tido problemas para justificar meus atrasos no trabalho. Já recebi advertência. Cada pedaço da minha vida está sendo arruinado por essa mulher. Eu saio na hora do almoço e volto mais magro ao escritório. Às vezes, quando muito, como um pastel em algum boteco que, por sorte, esteja localizado em um ponto privilegiado. Observo-a de longe, mastigo depressa, quase esqueço de pagar a conta. Computo cada gesto, cada sorriso. Sim, os sorrisos: são eles que me matam. São eles que conferem a independência da felicidade dela em relação a mim. Ela e os colegas saem do restaurante, vejo-a falando com um deles, um homem. Pego o maço, tiro um cigarro, acendo-o. No bolso, um cartão de um detetive particular. Aliso-o com dedos nervosos, penso em colocar microfones em sua bolsa. Mas faltam-me recursos - e insanidade. Sim, sobretudo a insanidade necessária para vazar meus olhos em cada detalhe e momento dela. Mantenho um revólver que comprei há dois meses em nossa casa, debaixo de nossa cama. Minha raiva é silenciosa, meu domínio frustrado sobre sua vida é coisa que guardo em mim. Às vezes, quando observo-a deste boteco imundo, minha vontade é pegar o revólver e matar esse sujeito com quem ela tanto fala. Eu é quem deveria ter o poder de fazê-la sorrir, e não esse moleque que acabou de sair das fraldas. Mas quando estamos em casa, no limite dos três anos de casados, o meu ressentimento é mais forte: extrai lágrimas, almofadas e paredes. Talvez melhor fosse matá-la. Ou meter logo a bala em minha cabeça. Agora ela volta à empresa: não foi hoje que aproveitou a hora do almoço para ir num motel. Suspiro de alívio, buscando como um desgraçado o nosso fim que tanto desejo não desejar. Corro ao meu escritório, cada dia mais suado, cada dia mais magro. E uma vez mais atrasado.